Scúru Fitchádu no Musicbox: África e punk juntos no coração
Numa noite de chuva leve, a 31 de janeiro, o Musicbox recebeu a apresentação de Un Kuza Runhu, o mais recente álbum de Scúru Fitchádu, projeto de Marcus Veiga, conhecido também como Sette Sujidade. O disco, lançado no início deste ano, prossegue no trilho criado em 2016 pelo EP que o antecedeu, de título homónimo, procurando transgredir os limites do punk, da eletrónica e do funaná, resultando numa experiência sónica única que nos toca em várias partes diferentes do nosso cérebro musical, o que, à primeira vista, nos soa bastante estranho, mas rapidamente se entranha no nosso corpo e toma controlo do mesmo.
Mas, primeiro, o
aquecimento foi feito por Vaiapraia e as Rainhas do Baile. Enquanto a sala ainda
se compunha, Rodrigo Araújo, acompanhado por April Marmara na guitarra, Daniel
Fonseca no baixo e Candy Diaz na bateria, não perderam tempo e entraram logo a
abrir com Panelei Punx, seguindo depois para Kate Winslet, do
álbum 1755. O concerto foi flutuando entre faixas do álbum de 2016 e o
seu EP de 2018, Amor Duro. O público mostrou-se presente e atento,
mostrando o seu apoio aos músicos e cantando praticamente todas as faixas
escritas pelo compositor que, vestido com uma espécie de gabardine, explodia de
energia em cima do palco (com a ajuda do “poder da tequila”) e no meio do
público como é habitual nos seus concertos, não deixando ninguém indiferente,
seja pela performance, seja pelas letras que, sempre num tom meio humorístico
(pelo menos numa linguagem que inevitavelmente nos faz esboçar sorrisos),
expressa as suas angústias amorosas mais profundas. A sua voz, grave e poderosa,
muitas vezes munida de raiva, ecoa pela sala do Musicbox e, no meio de todo o
instrumental punk que a acompanha, acaba a ser o que mais nos agarra, não só
pelo timbre, mas pela intensidade com que pronuncia as letras – é impossível
negar a integridade do músico e a força com que sente cada palavra que escreve.
O concerto culmina com Rapaz #1, single do seu primeiro LP, festejado
pelo público que grita a letra do início ao fim, ficando a pedir por mais
enquanto os artistas se despediam do palco.
Nem a energia
explosiva de Vaiapraia nos conseguiu preparar para o concerto que se seguia. Em
palco entra Sette Sujidade juntamente com a sua banda, e, durante a hora que se
seguiu, os ritmos rápidos nunca desaceleraram, tal como Scúru Fitchadu não
parou também, como se tivesse mudanças infinitas como um carro saído de um
filme de Velocidade Furiosa. Disgadja si nta podê foi a música escolhida
para fazer as honras de inaugurar o concerto, seguindo-se Sorrizu Margôs.
O dualismo existente
entre a aura punk e funaná era representada na perfeição no ambiente do
espetáculo. O corpo de Scurú flutuava entre os movimentos violentos através de
saltos altos, pernas por cima de microfones, línguas de fora, e uma linguagem
corporal animalesca, e os bailinhos que seguiam os ritmos africanos, num tom
muito mais suave e “líquido”. O público, também ele misturava esta duas
essências, uns virados para os moshes e outros para dançarem suaves passos de
dança que eram muitas vezes acompanhados pelo conhecido ferro característico do
funaná, tocado pelo produtor com uma faca. Os graves tenebrosos criaram uma
ambiência pesadíssima, à qual se juntava a voz rouca do músico que gritava as
suas letras em crioulo, tudo isso desconstruído de forma a criar uma certa leveza
em músicas como Fomi 21, na qual a melodia vocal e o ritmo se associam
mais à cultura Cabo Verdiana.
Houve ainda espaço para a
política, seja pelas projeções que passaram várias vezes o rosto de Cláudia
Simões e o vídeo do estrangulamento que sofreu por parte de um agente da PSP,
com mensagens como “Luta contra o racismo”, seja pelas suas palavras – o músico
apresenta uma postura totalmente diferente quando interage com o público e
quando canta – dedicando, inclusive, Ken Fi Fra, uma das primeiras
músicas a atingir um sucesso maior, a Filipe Sambado, devido ao cancelamento do
seu concerto no Hard Club em manifestação contra o espaço ter acolhido um
evento fascista – e proferindo ainda frases de combate à gentrificação como
“2020 tem de haver tascas a arder”.
A última música foi
acompanhada por duas jovens bailarinas de batuque, uma dança tradicional Cabo
Verdiana, terminando assim uma noite repleta de emoções de forma positiva e em
festa. Os sorrisos nas caras do público eram evidentes, esta noite correu bem a
todas as pessoas que se deslocaram ao Musicbox e testemunharam estes dois
concertos, acompanhados por amigos, uns cigarros, umas cervejas, e uns
passos de dança.
Scúru Fitchadu mostra-nos como conseguir desconstruir
limites musicais que só existem nas nossas cabeças sem qualquer pretensiosismo,
dando passos naquilo que poderá ser considerada música avant garde. As suas performances ao vivo são também elas únicas no
panorama musical português, Sette e os seus colegas sabem fazer a festa e
cativar o público como poucos. As suas músicas falam de subversão, revolução e
desespero, mas o que ouvimos também é a paixão que tem pelo que faz e pelos
diferentes géneros que une em si e entrega ao público, como se nos desse um
murro embrulhado com um bonito laço azul. Seja no punk, seja no funaná, seja
nas batidas drum and bass que às vezes aparecem escondidas, seja nos samples
que usa, a mensagem parece confusa mas, no coração, todos nós a entendemos
perfeitamente.
Texto: Francisco Couto
Fotos: Iris Cabaça
Scúru Fitchádu no Musicbox: África e punk juntos no coração
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fevereiro 04, 2020
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