Superballet com Yves Tumor na Galeria Zé dos Bois: uma nova metamorfose
A sala principal da
Galeria Zé dos Bois esteve completamente esgotada para a mais recente edição de
Superballet, desta vez com um concerto de Yves Tumor, com os Império Pacífico a
abrir a primeira noite de fevereiro. Após a sua passagem pelo NOS Primavera
Sound em 2019, em formato banda, Sean Bowie apresentou-se a solo em Lisboa,
deixando a pairar a dúvida de qual das vertentes do músico multifacetado iríamos
testemunhar, se o lado mais noise, ambient e experimental que o vimos
desenvolver em When Man Fails You e Serpent Music, ou se o seu
lado mais ligado ao songwriting convencional, que explorou mais em Safe In
The Hands Of Love, o seu último álbum, se uma fusão de ambos. Afinal, esse
é um dos principais aspetos cativantes na sua música: Yves é um camaleão sonoro
e performativo, e nunca sabemos o que esperar quando sobe a palco.
Os Império Pacifico
marcaram o ritmo do início da noite de uma sala já quase cheia. Pedro Tavares
(Funcionário) e Luan Bellussi (Trash Can) apresentaram o seu mais recente
disco, Exílio, que será lançado na sua totalidade no dia 22 de
Fevereiro, apesar de já podermos ouvir algumas das suas músicas no Bandcamp, A
construção das músicas passa pelas melodias sublimes e voláteis criadas por
sintetizadores, que se repetiam ao longo das músicas, enquanto os beats
determinavam as diferentes fases da viagem sonora e marcavam as diferentes dinâmicas de cada
uma das faixas apresentadas. Esses beats flutuavam entre vários estilos,
passando tanto pelo trip hop como pelo afro beat e o house, desconstruindo cada
uma dessas referências ao ponto de ser quase impossível de catalogar a sua
origem. É por aí que passam as músicas de Império Pacífico: a sua identidade
única não nos permite conseguir colocá-los facilmente numa das caixinhas de
géneros que temos no nosso cérebro para organizar melhor a nossa biblioteca
musical, acabando por nos remetermos a categorizá-los de experimentalismo, mas
um experimentalismo mais confortável que aquele a que normalmente associamos
este nome. O público dançou, divertiu-se, e seguiu a música que, ao invés de os
confrontar com desconstrução atípica, criou uma camada melodiosa e doce que nos
entrava com facilidade no ouvido e nos reconfortava, tornando a expressiva
viagem sonora numa experiência que nos chegava aos ouvidos em plena harmonia.
O seu set só parou
aquando da entrada de Maria Reis, que se juntou ao duo para cantar, com a ajuda
de um pedal de delay e de um intenso reverb, as duas colaborações que fizera
com eles, Camada a Ferver e Nitsusada, que terminaram o concerto
numa aura de dream pop suave coberta de fumo, fumo esse que, após o término do
concerto, se tornou mais intenso ao ponto de cobrir toda a sala. O momento mais
esperado da noite estava prestes a acontecer, e a expetativas eram bem altas.
A quantidade exagerada de
fumo criou uma densa e etérea parede vermelha, definida pelos holofotes
laterais, e, ao som de Faith In Nothing Except In Salvation, vemos o
vulto gigante do artista entrar em palco. À medida que o fumo ia desaparecendo,
conseguimos identificar melhor a presença do músico, vestido com botas até ao
joelho, calções, um casaco e luvas de cetim. Yves Tumor foi um animal em palco,
nunca esteve parado, e cantava com a sua alma as músicas que nos apresentou,
sendo que muitas delas não foram ainda lançadas. Não teve medo da interação
física com o público português, estando muitas vezes em cima da primeira fila,
abraçando e agarrando quem estava próximo dele.
No que toca a reportório
conhecido, ficou-se apenas por Noid, a música que mais fez toda a gente
na sala vibrar (teve ainda direito a um “fuck the police” final, extremamente
bem recebido pelo público), Licking na Orchid, que encheu o espaço com
emoção com uma beleza estética que nos faz respirar bem fundo, fechar os olhos,
e apreciar a bonita viagem que o amor nos oferece, e Lifetime, que
terminou o concerto e nos deixou roucos de tanto gritar. As restantes músicas
tocadas acabam por passar pelo mesmo registo que estas três, dando mais uso à
voz para a construção de melodias estruturadas por cima de instrumentais que
misturavam sons analógicos como a bateria e sintetizadores.
Com este concerto, conseguimos
perceber a direção que Yves Tumor está a tomar na sua carreira. Assim como a
parede de fumo foi progressivamente desaparecendo, fomos conseguindo ver as
intenções do artista, que se foca cada vez mais no amor e na proximidade,
interagindo fervorosamente com o público, acabando ainda por ir para o meio
deste numa das músicas. Yves já afirmou ter encontrado uma forma diferente de
estar enquanto músico quando criou a sua banda, que lhe deu espaço para se
tornar um performer onde é mais preponderante a sua voz e a ligação com o seu público,
e, com estes sneak peeks dos próximos lançamentos que se avizinham, nos quais
canta por cima de beats situados entre o rock e o pop com inúmeras camadas que
geravam uma cacofonia nos nossos ouvidos, vemos o artista identificar-se com a
posição de uma pop star em todas as suas formas, interpretando, no entanto, ao
mesmo tempo o papel de anti estrela, a par do que artistas mediáticos como
Marylin Manson fizeram outrora. Apesar das suas roupas excêntricas, das
melodias vocais acessíveis e da sua performance carismática, as suas músicas
continuam repletas de ruído e parecem abordar uma faceta mais distópica e
sombria, como que criada com o intuito de excomungar os seus demónios, apesar
de, quando o conseguimos olhar nos olhos, ficarmos na dúvida se o demónio na
verdade não é ele. O ambiente e o noise em bruto desapareceram, ficando réstias
que continuam a moldar e a dar uma nova dimensão a este novo formato mais
convencional que começou a abordar.
É complicado entender se
o Yves correspondeu às expetativas do público, porque na verdade também nunca
se sabe bem o que esperar dele. Mas dificilmente alguém saiu de lá desapontado
ou indiferente à presença do músico americano que, sozinho em palco, domou a
sala completamente lotada da Galeria Zé dos Bois. Os seus fãs estão bem
familiarizados com as suas constantes metamorfoses, e certamente continuarão a
acompanhar as músicas do artista com um dos percursos mais interessantes e
inesperados nos últimos anos.
A noite acabou bem, sem
desilusões, e o fomo-nos embora enquanto tentávamos perceber se/o quanto
gostámos desta autêntica jarda de concerto que Sean Bowie nos proporcionou. O seu
experimentalismo deixou de ser algo focado apenas no sónico e transformou-se
numa experiência que abrange muito mais sentidos que a audição, e nos deixa
perplexos com a sua dimensão.
Texto: Francisco Couto
Fotos: Iris Cabaça
Superballet com Yves Tumor na Galeria Zé dos Bois: uma nova metamorfose
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fevereiro 06, 2020
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